Tradicionalmente, em países de civil law, como o Brasil, a jurisprudência serve de fonte material, complementar – e, portanto, não vinculante – de direito. Por meio da emenda constitucional n. 45, esse panorama começou a mudar, uma vez que se autorizou ao STF a edição de súmulas com eficácia vinculante. Em outras palavras, a jurisprudência consolidada do Supremo, resumida em súmulas, foi transferida do rol de fontes complementares de direito para o rol das fontes formais, de observância obrigatória por tribunais e pela administração pública direta e indireta (art. 103-A, CF).
O art. 927 do novo CPC dispõe que “os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”.
A interpretação da norma tem sido objeto de acalorados debates doutrinários. Para parte dos estudiosos, o verbo “observar” traduz a ideia de obrigatoriedade e, assim, a nova ordem processual elevou ao patamar de fonte formal de direito as espécies de precedentes indicadas no artigo. Seria um modo de alcançar mais rapidamente a isonomia de tratamento dos jurisdicionados, sem que, para tanto, fosse necessária a interposição de seguidos recursos até a obtenção de um julgamento igualitário para todas as situações fáticas idênticas.[1] Outra parcela da doutrina não extrai da locução contida na lei a obrigatoriedade de observância do precedente. A lei federal não estaria autorizada pela Constituição a incumbir o Poder Judiciário na criação de normas abstratas, ainda que decorrentes da análise de um caso concreto.[2]
Não obstante as fragilidades de interpretação do art. 927 à luz da Constituição, é inegável que o novo CPC objetivou turbinar a força dos precedentes.[3] Para se chegar a essa conclusão, basta examinar alguns dispositivos do Código. O art. 311, inciso II, permite a concessão liminar da tutela de evidência se “as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante”. O art. 332 impõe ao juiz a rejeição liminar do pedido constante da petição inicial se a causa versar sobre controvérsia exclusiva de direito e a pretensão do autor estiver em desacordo com algum dos precedentes listados em seus incisos.
O art. 947, § 3º, que regula o incidente de assunção de competência, dispõe que “o acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão de tese”. De modo semelhante, dispõe o art. 985, sobre o incidente de resolução de demandas repetitivas: “julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região; II – aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986”. Não observada a tese adotada, caberá reclamação, consoante dispõe o art. 985, § 1º.
Terão seu seguimento obstado pelo tribunal de origem os recursos especial e extraordinário que contiverem pedidos contrários ao estabelecido no regime dos repetitivos, como dispõe o art. 1.030, I. O mesmo artigo, no inciso II, determina que o Presidente da corte local encaminhe o processo ao órgão julgador para realização do juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir do entendimento do STF ou do STJ exarado nos regimes de repercussão geral ou de recursos repetitivos.
Fácil notar que a esses precedentes foi conferida grande relevância, impondo o modelo de julgamento neles estabelecido quando do enfrentamento de casos semelhantes. Essa nova perspectiva foge, inclusive, à característica habitual do sistema de binding precedents, no qual o precedente serve de paradigma para casos futuros, e se identifica mais com o modelo de transferência de competência sobre determinadas questões para outros órgãos. É o que ocorre por exemplo com o julgamento de IAC, de IRDR ou de recursos especial e extraordinário repetitivos: o conhecimento da questão afetada é transferida para outro órgão julgador e o resultado replicado nas demandas sobrestadas. No entanto, para os casos futuros, o modelo de julgamento firmado nos incidentes servirá de precedente.
Na tradição do direito processual civil brasileiro, as partes dialogam diretamente com o juiz da causa, tendo a oportunidade de exercício do contraditório, de modo a influenciar a decisão final. Nesse novo mundo processual de recursos repetitivos e incidentes, a decisão tomada em procedimento substancialmente estranho às partes as afeta diretamente. O juiz com quem dialogaram apenas aplicará ao caso concreto das partes o modelo de decisão estabelecido em outra seara.
A resposta para essas indagações pode ser encontrada em uma nova modalidade de contraditório.
Os recursos repetitivos, os incidentes de assunção de competência e de resolução de demandas repetitivas e todos os demais institutos processuais cujas decisões estabeleçam a forma de decidir de outras demandas, devem necessariamente ser abertos e convidativos à participação de interessados. Às partes dos processos originários e a todos aqueles que podem ter seus direitos afetados pela decisão deve ser oportunizada a manifestação em contraditório de forma a lhes permitir influenciar o órgão julgador.
Para que isso ocorra, imprescindível, em primeiro lugar, a divulgação da existência desses procedimentos. O art. 979 do CPC leva em consideração essa preocupação e incumbe o Conselho Nacional de Justiça como órgão responsável pela centralização e difusão da informação. Sem ciência prévia não há contraditório.
Em segundo lugar, o procedimento desses novos institutos deve propiciar espaços próprios e eficazes de participação de interessados, seja por meio de manifestações escritas ou orais, capazes de conduzir oportunamente seus argumentos aos membros da turma julgadora, antes de quaisquer decisões. O contraditório há de ser prévio.
Ainda, o ambiente, a duração e a forma de atuação dos interessados devem ser adequados à efetiva demonstração de seus pontos de vista, configurando instrumentos eficazes de convencimento. Ademais, a existência de mecanismos de participação institucional ou de classes também deve estar prevista, ampliando o compartilhamento democrático de informações dentro do processo. Participação como mera formalidade não é contraditório.
Normas contidas nos art. 138 (amicus curiae), 983 e 1.038 do Código exprimem a preocupação do legislador de dilatar a participação nos processos com a utilização de meios não tradicionais. São instrumentos novos de influência para uma nova realidade.
De um lado, compete aos tribunais dar eficácia a essas normas, interpretando-as de modo abrangente, a fim de que se leve em consideração o intuito da lei de dar voz a boa parte daqueles que serão afetados pela decisão. A restrição à participação é excepcional, sob o risco de perda de legitimidade da própria decisão. De outro lado, cabe aos interessados o efetivo exercício desse novo direito de contraditório pelas vias previstas em lei, sem parcimônia. A omissão do interessado nada mais é do que a transferência a terceiros – nem sempre abalizados – do seu direito de argumentação e convencimento.
E, por fim, é preciso que os operadores do direito percebam que o jogo mudou. O novo CPC inaugurou uma nova forma de atuação em contraditório, muito diferente da tradicional. O novo contraditório inaugura uma nova fase de comportamento de advogados, julgadores, promotores e da própria sociedade no processo judicial.